08/04/2024

Reforma do Código Civil abre nova frente na discussão sobre correção e juros de dívidas

Por: José Higídio
Fonte: Consultor Jurídico
Em paralelo ao julgamento da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça
sobre correção de dívidas civis, a comissão de juristas responsável no Senado
pela revisão do Código Civil também discute a questão. A sugestão da relatoriageral
é a aplicação dos juros de 1% ao mês.
A proposta altera o artigo 406 do Código Civil. A norma atual diz que, se os
juros moratórios (aplicados por atrasos em pagamentos) não forem
convencionados ou o forem sem taxa estipulada, serão fixados “segundo a taxa
que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda
Nacional”.
O STJ discute qual deve ser a taxa dentro das regras atuais. Em março, o
julgamento do STJ foi interrompido por um pedido de vista do ministro Mauro
Campbell Marques e por uma questão de ordem levantada pelo ministro Luis
Felipe Salomão.
A Corte Especial já tem maioria de votos favoráveis à aplicação da taxa Selic,
que acumula juros e correção monetária, quando não houver estipulação das
partes em sentido contrário. Salomão tenta anular o julgamento devido à
ausência dos ministros Francisco Falcão e Og Fernandes em uma sessão.
Para seis ministros, a taxa Selic é o índice adequado, pois é o mesmo aplicado
para a Fazenda Nacional. Já Salomão e outros quatro defendem a aplicação dos
juros de 1% ao mês.
Enquanto a polêmica não é resolvida no STJ, a comissão de juristas, que é
presidida pelo próprio Salomão, tenta emplacar a tese dos juros de 1% ao mês.
O anteprojeto de lei deve ser entregue ao Senado na próxima quinta-feira
(11/4).
Especialistas consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico
consideram que a proposta da comissão é positiva — tanto por definir qual é a
taxa a ser aplicada quanto por escolher a taxa mais adequada.
Controvérsia da Selic
Hoje, cada tribunal tem o poder de escolher qual será o índice da correção
monetária, entre IPCA, IGP-M, INPC e outros. A correção se soma aos juros
de mora, que são convencionados em 1% ao mês.
A principal diferença entre o uso da Selic e dos juros de 1% ao mês nos cálculos
judiciais é a necessidade de acumular essa taxa com o índice de atualização
monetária.
Como explica a advogada Maricí Giannico, sócia de contencioso earbitragem
do escritório Mattos Filho, a Selic, taxa básica de juros da economia, tem
natureza mista, pois agrupa juros e correção monetária.
Ou seja, a taxa dispensa o mecanismo complexo de corrigir o valor e somar os
juros a ele. De acordo com a advogada, isso significa que, caso a Selic seja
adotada como regra, não será necessário um segundo cálculo para a correção
monetária do valor.
Já a taxa de 1% ao mês corresponde apenas aos juros de mora. Assim, sua
aplicação exige também a correção monetária, conforme o índice definido pelo
tribunal.
“Algo que se questiona em relação à aplicação da Selic, e que ainda será decidido
pelo STJ, é que, muitas vezes, os juros e a correção monetária não têm
incidência simultânea”, explica Giannico.
Foi por isso que Salomão propôs, no julgamento do STJ, o método sem a Selic.
Essa taxa não é encarada como um problema quando a indenização é referente
a uma relação contratual, pois, nesses casos, é praxe que as partes
convencionem os índices de correção monetária e juros.
Mas, quando o caso é de responsabilidade extracontratual, como uma ação
sobre danos morais, a correção do valor e os juros de mora correm a partir de
momentos distintos. Por isso, a Selic, que carrega ambos os índices de uma vez
só, é vista como problemática.
Nesses casos, segundo a Súmula 54 do STJ, os juros moratórios fluem a partir
do evento danoso. Já o termo inicial da correção monetária é a data da decisão
que fixou o seu valor, como diz a Súmula 362.
Definição positiva
Embora a fixação da taxa de 1% ao mês contrarie o entendimento da maioria
da Corte Especial do STJ, Giannico vê com bons olhos “a positivação do índice
que deverá ser aplicado”. Na sua visão, isso “evita maiores discussões e
divergências, gerando clareza e, nesta medida, segurança jurídica e
previsibilidade”.
Para o advogado Luiz Fernando Casagrande Pereira, que representa o
Conselho Federal da OAB no processo discutido pelo STJ, o problema da regra
atual é estabelecer a taxa de juros “a partir de uma cláusula aberta, que remete
à legislação tributária”.
“Há dúvidas objetivas acerca de qual é o índice estabelecido pelo atual artigo
406 do Código Civil, porque a legislação tributária sobre o tema não dá resposta
assertiva”, explica.
Além disso, a legislação tributária foi e é alterada com frequência ao longo dos
anos, conforme a política fazendária.
Assim, Pereira vê a proposta da comissão como positiva, já que “encerra a
discussão e garante maior estabilidade à taxa de juros de mora das dívidas civis”.
A opinião é semelhante à de Leonardo Amarante, especialista em
responsabilidade civil e advogado da autora da ação discutida no STJ.
Segundo ele, “a indefinição de uma taxa legal, cenário que ocorre atualmente,
leva a um contexto de insegurança e estímulo à postergação do adimplemento”.
Com a definição da taxa de 1% ao mês, seria possível prever o valor a ser obtido
a partir da correção, “denotando-se transparência, segurança e previsibilidade a
um índice fixo e bem estabelecido”.
Taxa adequada
De acordo com Pereira, “a correção pela Selic sempre resultará em um valor
menor”. Na visão do advogado, isso retira do devedor o estímulo para que
cumpra sua obrigação.
Segundo ele, a taxa de juros deve proporcionar ao devedor “um custo de não
pagar maior do que o benefício de não pagar”. A Selic pode tornar a
inadimplência mais vantajosa para o réu do que o pagamento imediato.
Pereira também ressalta que a Selic é um índice pré-fixado pelo Comitê de
Política Monetária (Copom) do Banco Central (BC). Ou seja, “é um
instrumento de política pública” do BC e está sujeita a interferências políticas.
A Selic também “não guarda relação direta com a desvalorização da moeda no
tempo”. O advogado lembra que, durante muito tempo, a taxa foi inferior à
inflação. Entre o fim de 2020 e o início de 2021, a Selic foi de 2% ao ano. Hoje,
está em 10,75% ao ano.
Para Amarante, a proposta da comissão de juristas “deve ser vista com olhar
positivo e esperançoso”, pois busca trazer “um índice legal estável, sem a
temerosa volatilidade da Selic”. Isso garante “isonomia, segurança jurídica e
eficiência a todos aqueles que possuem causas cíveis no país”.
O advogado ressalta que a aplicação de um “índice volátil” prejudica os
cidadãos de forma desmedida e beneficia grandes empresas, como bancos,
seguradoras e transportadoras — que são, historicamente, as maiores devedoras
em Juízo.
Com a taxa de 1% ao mês, os grandes devedores ficariam sem margem para
suas “costumeiras tergiversações”. Amarante afirma que as companhias se
aproveitam das constantes mudanças no valor da Selic e aguardam o “momento
ideal” para pagar a dívida.
“Não se pode permitir a utilização de um índice cuja função vocacional consiste
no combate à inflação, porquanto essa função faz com que o próprio índice seja
recorrentemente redefinido pelas autoridades monetárias”, assinala.
Futuro incerto
Amarante acredita que a proposta da comissão coloca uma “pá de cal” na
discussão. Se aprovada, as partes não mais dependerão da interpretação dos
tribunais sobre qual seria a taxa aplicável.
Já a advogada Maria Cristine Lindoso, da equipe de contencioso cível do
escritório Trench Rossi Watanabe, acredita que, mesmo se aprovada a proposta,
“haverá discussão sobre os efeitos da nova redação do artigo (já que juros são
matéria de ordem pública) e da eficácia da eventual decisão do STJ para dívidas
de antes da reforma”.
Tudo depende de como será a proposta final da comissão e do momento em
que ela for votada — isso pode acontecer, por exemplo, depois da finalização
do julgamento do STJ. Mas há um potencial debate sobre o momento de
aplicação da possível nova regra.
“Certamente surgirão novas questões a serem solucionadas pela Corte acerca
do regime aplicável às relações que se desenvolveram com base nas duas
regras”, indica Pereira. Da mesma forma, o STJ enfrentará discussões sobre a
retroatividade ou não da mudança.
Segundo ele, este “é um fenômeno inerente a qualquer reforma legislativa”.
Outros pontos da reforma do Código Civil, que é ampla, também devem passar
por tal processo.
Giannico destaca que a redação do novo Código Civil ainda pode estabelecer
regras transitórias para aplicação de suas previsões. Isso “poderá limitar
eventuais discussões sobre os índices aplicáveis aos processos já em curso no
âmbito do STJ”.
De qualquer forma, a advogada entende que a definição do índice aplicável às
dívidas civis “reduzirá possíveis incertezas no longo prazo, uma vez que não
haverá espaço para discussão nos processos iniciados após a entrada em vigor
do novo Código Civil”.